terça-feira, 31 de outubro de 2023

O Simbólico Título de "Campeão do Norte"

Desde a sua implantação no Brasil em fins do século XIX, o futebol rapidamente cresceu em diversos estados, refletindo-se na criação dos campeonatos locais já na primeira década do século XX — vale destacar a vanguarda do Pará como um dos pioneiros desse movimento desde 1908. Não demorou muito para que a ideia de um protótipo de Campeonato Brasileiro florescesse já nos anos 10, envolvendo os campeões dos principais estados da época. Porém, a precária infraestrutura de transportes e comunicações em um país de dimensões continentais postergou o estabelecimento de um certame verdadeiramente nacional até 1959, com a Taça Brasil.

Todavia, isso não quer dizer que não havia o intercâmbio entre os diferentes estados, já que era comum na época a realização de excursões. Porém, como eram os times e federações que tinham que arcar com os altíssimos custos das viagens e estadias, esses empreendimentos geralmente eram feitos entre estados de maior proximidade territorial. Isso contribuiu para a instalação de uma linha imaginária que dividiria o futebol brasileiro em dois principais eixos: o "Norte", representado pelos estados do Norte e Nordeste, e o "Sul", pelos estados do Sul e Sudeste. Portanto, o intercâmbio era mais "intra-eixo" do que "inter-eixos".

O maior exemplo dessa configuração eram as relações entre Rio de Janeiro e São Paulo, indiscutivelmente os maiores centros futebolísticos do Brasil. Os embates entre os seus representantes, sejam times ou seleções, tinham extensa repercussão na imprensa nacional para se decidir qual era de fato o grande pólo do futebol brasileiro. Foi nesse cenário que surgiu uma série de disputas entre os campeões de cada estado que foram coletivamente chamadas de Taça dos Campeões Estaduais Rio-São Paulo.

Nesse ponto, é essencial fazer a distinção em relação ao Torneio Rio-São Paulo. Este foi criado em 1933 fruto do nascente profissionalismo, prosseguindo nos anos 40, servindo de base ao "Robertão"/Taça de Prata/Campeonato Brasileiro a partir de 1967 e continuando como um torneio interestadual isolado na década de 1990. Já a Taça dos Campeões Rio-São Paulo é um termo genérico para designar uma espécie de tira-teimas entre os campeões cariocas e paulistas, iniciado com a Taça Salutaris em 1911 e disputado de forma não linear ao longo das décadas seguintes, às vezes de forma oficial, às vezes, amistosa. A última edição, em 1987, foi válida pelo Campeonato Brasileiro.

Essa rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo também foi um dos fatores que prejudicaram uma incipiente integração nacional. Afinal, os vencedores dos confrontos entre eles eram equivocadamente tratados como "campeões brasileiros". Logo, não haveria necessidade de se implementar uma competição verdadeiramente nacional — no máximo com outros representantes do "Sul", como ocorreu com os Torneios dos Campeões de 1920 e 1937. 

Mas e o "Norte"?

Ainda que a valorização "sulista" fosse a visão dominante na mídia nacional, alguns segmentos resistentes reconheciam o valor dos centros "nortistas", colocando-os em condições de rivalizar com Rio de Janeiro e São Paulo — daí surgiram as primeiras discussões acerca de uma competição nacional já desde a década de 1910. Porém, como o Campeonato Brasileiro não saiu do papel nesse primeiro momento, os estados do Norte-Nordeste começaram a organizar as suas próprias disputas. Nesse aspecto, destacam-se os estados do Pará e de Pernambuco como os baluartes do setentrião brasileiro. 

À semelhança do que ocorria com Rio de Janeiro e São Paulo, do confronto que envolvia representantes paraenses e pernambucanos apurava-se o "campeão do Norte". Diferentemente dos torneios norte-nordestinos, oficiais ou amistosos, que surgiriam nas décadas seguintes, com regulamentação e critérios específicos para a sua tipificação, o "campeão do Norte" era um título essencialmente simbólico, definido pelo confronto específico entre os representantes de Pará e Pernambuco, geralmente os campeões estaduais ou selecionados, durante as excursões dos clubes a esses estados, conhecidas como "temporadas".

A primeira vez que isso aconteceu foi quando o Clube do Remo excursionou a Recife (PE) em 1917 para participar dos festejos do Centenário da Revolução Pernambucana de 1817 e conquistou a taça de mesmo nome ao vencer o scratch da Liga Sportiva Pernambucana (LSP) em duas partidas — 4 a 2 em 11/03 e 3 a 2 em 15/03 —, sem precisar do jogo-desempate. Os confrontos marcaram a inauguração do campo oficial da LSP, onde hoje é o estádio dos Aflitos. Ainda nessa excursão, o Remo venceu o América-PE por 2 a 0 e empatou com o Paulista-PE em 2 a 2. Ressalte-se que a ideia inicial era a formação de um campeonato interestadual que contaria ainda com times de Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba.

Diário de Pernambuco, 16/03/1917

É importante destacar que antes disso tudo, o Remo já era retratado pela imprensa pernambucana como campeão do Norte, mas, nesse caso, se referindo à sua região, já que o Leão Azul era o tetracampeão paraense na época. Porém, com a conquista da Taça Centenário, esse título simbólico ganhou uma nova conotação, conferindo ao seu possuidor um status privilegiado de líder das regiões Norte e Nordeste — em outras palavras, do eixo "Norte" — e o "terceiro lugar" entre as potências futebolísticas no cenário nacional, atrás apenas de Rio de Janeiro e São Paulo. Isso é particularmente observado em edições posteriores do Diário de Pernambuco e Estado do Pará, que tratavam da ida de um time pernambucano a Belém em 1919.

A temporada pernambucana na capital paraense foi histórica. O Sport defendeu o seu estado com muita galhardia suplantando o combinado formado por Remo e Paysandu, com um empate e duas vitórias, o que lhe valeu a posse do troféu Leão do Norte, responsável pela origem do mascote rubro-negro. Ainda na sua turnê, o Sport perdeu para o Paysandu por 4 a 0 antes do terceiro jogo contra o combinado. Entretanto, o encontro mais importante era evidentemente contra o Remo, o "campeão do Norte", como ressalta o subtítulo do Estado do Pará, de 06/04/1919: "O campeão do Pará e a scratch pernambucana disputam hoje o último match da temporada sportiva — decidir-se-a a hegemonia que vimos mantendo há três annos".

Estado do Pará, de 06/04/1919

Segundo o jornal, diferentemente do Paysandu, que se valeu do apoio de alguns jogadores azulinos cedidos ao seu time, o Clube do Remo optou por enfrentar o time pernambucano com as próprias forças. Da mesma forma, o Sport se apresentaria com o que tinha de melhor. Assim como em todos os jogos anteriores, o palco do confronto era o Baenão, alvo de todos os olhares da sociedade esportiva paraense, que depositava no esquadrão remista a esperança de defender o prestígio que o Pará possuía. E graças a Chermont, o Remo venceu o "embate de Leões" por 1 a 0, mantendo o seu título de "campeão do Norte", como evidencia o Estado do Pará, de 07/04/1919:

"O Club do Remo, o valoroso campeão da cidade, manteve nobremente o seu renomado título de campeão do norte do Brasil, vencendo hotem galhardamente o conjuncto pernambucano, que aqui viera, de par com estreitar a amizade entre irmãos do mesmo sport, disputar-lhe a fama que se tinha de expoente maximo do septemtrião brasileiro.

A esse título de que toda a família sportiva do Pará se orgulha em ver honrando uma das suas cores valorosas, aqui ficará ainda, como a expressão verdadeira e digna do nosso valor sportivo, da valia dos nossos homens como 'sportsmen', e sobretudo, da maneira leal e desinteressada como aqui se pratica o sport pelo sport".

Estado do Pará, de 07/04/1919

O Diário de Pernambuco, em sua edição de 09/04/1919, corrobora com as informações do Estado do Pará, enfatizando aspectos da rivalidade entre Remo e Paysandu e a conservação do título de "campeão do Norte": "TÉRMINO DA TEMPORADA SPORTIVA — COMMENTARIOS SOBRE O ULTIMO JOGO INTERESTADUAL — O 'CLUB DO REMO' É CONSIDERADO O CAMPEÃO DO NORTE — (...) Finalmente para o Club do Remo, a victoria de hontem teve as suas significações: a primeira conservou-lhe o título de campeão do norte, que o Club do Remo guarda com ufania (...)".

Diário de Pernambuco, 09/04/1919

A decisão mais polêmica foi sem dúvidas a de 1920. Nesse ano, Remo e América-PE organizaram a ida do então bicampeão pernambucano a Belém. Na sua temporada, o América começou empatando com a Seleção da Liga Paraense de Sports Terrestres (LPST) em 1 a 1 e vencendo o Brasil Sport-PA por 1 a 0. Em seguida, partiu para o tão ambicionado confronto contra o Clube do Remo, em 08/02/1920, no Baenão, que decidiria o título de "campeão do Norte", como salientou o Estado do Pará no dia seguinte:

"O encontro marcado para hontem entre os conjunctos campeões do Pará e Recife, Club do Remo e America Foot-ball Club, era sem duvida dos mais auspiciosos e anciosamente esperados, por isto que ia decidir o título de campeão do norte do Brasil que o Remo victoriosamente sustentando".

Estado do Pará, 09/02/1920

Todavia, apesar de toda importância, o jogo foi manchado com um desfecho triste. Quando o Remo alcançou o seu gol, anotado por Dudu Silva, representantes da delegação americana não concordaram com a validação do tento, alegando alguma irregularidade. A equipe alviverde retirou-se de campo. Posteriormente, houve até uma ameaça de retornarem a Recife. Felizmente, graças à intervenção do Governador do Estado e do General Joaquim Ignacio, Remo e América fizeram um acordo cordial e o time pernambucano permaneceu em Belém.

Em seguida, o América perdeu para a Seleção Paraense por 3 a 0, mas venceu o Paysandu por 3 a 2 e o Remo por 2 a 1, em 24/02/1920. Como estava uma vitória para cada lado, o Remo propôs ao América uma partida de desempate no dia seguinte, horas antes do retorno da delegação americana, para definir quem ficaria de posse da taça Joaquim Ignacio e, consequentemente, com o título de "campeão do Norte". Porém, o América não aceitou, alegando que estava com alguns de seus jogadores machucados e que a licença dos seus trabalhos no Recife já havia expirado.

O Remo até tentou prorrogar a estadia pernambucana, considerando uma atitude anti-desportiva por parte do América não aceitar o desafio. Em contrapartida, o Alviverde se defendeu dizendo que ser deplorável essa ameaça e que não seria em uma série de partidas que se conquistaria o título de "campeão do Norte". Entretanto, apesar dessa declaração e da troca de farpas, o América foi considerado pela imprensa pernambucana como o "campeão do Norte" e, inclusive, recebeu homenagens do Jockey Club de Recife, como se observa nas matérias do Diário de Pernambuco.

Diário de Pernambuco, 25/02/1920 

Diário de Pernambuco, 06/03/1920

De qualquer forma, essa parece ser a última vez que esse título simbólico foi disputado, já que não se tem mais referências a ele nos jornais. Isso pode estar relacionado com um processo de enfraquecimento do futebol paraense a partir dos anos 20 em relação ao rival pernambucano e o surgimento de novas forças, como a Bahia a partir da década de 1930. Posteriormente, ao longo das décadas seguintes, surgiram novas competições, amistosas e oficiais, específicas para cada região ou que envolvessem uma disputa inter-regional, como as que o Clube do Remo conquistou entre o final dos anos 60 e início dos 70. Porém, tudo começou com o pioneiro e simbólico título de "campeão do Norte" nos primórdios do futebol brasileiro.

OS "CAMPEÕES DO NORTE"

REMO – "CAMPEÃO DO NORTE" DE 1917 A 1919

AMÉRICA-PE – "CAMPEÃO DO NORTE" DE 1920

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