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terça-feira, 31 de outubro de 2023

O Simbólico Título de "Campeão do Norte"

Desde a sua implantação no Brasil em fins do século XIX, o futebol rapidamente cresceu em diversos estados, refletindo-se na criação dos campeonatos locais já na primeira década do século XX — vale destacar a vanguarda do Pará como um dos pioneiros desse movimento desde 1908. Não demorou muito para que a ideia de um protótipo de Campeonato Brasileiro florescesse já nos anos 10, envolvendo os campeões dos principais estados da época. Porém, a precária infraestrutura de transportes e comunicações em um país de dimensões continentais postergou o estabelecimento de um certame verdadeiramente nacional até 1959, com a Taça Brasil.

Todavia, isso não quer dizer que não havia o intercâmbio entre os diferentes estados, já que era comum na época a realização de excursões. Porém, como eram os times e federações que tinham que arcar com os altíssimos custos das viagens e estadias, esses empreendimentos geralmente eram feitos entre estados de maior proximidade territorial. Isso contribuiu para a instalação de uma linha imaginária que dividiria o futebol brasileiro em dois principais eixos: o "Norte", representado pelos estados do Norte e Nordeste, e o "Sul", pelos estados do Sul e Sudeste. Portanto, o intercâmbio era mais "intra-eixo" do que "inter-eixos".

O maior exemplo dessa configuração eram as relações entre Rio de Janeiro e São Paulo, indiscutivelmente os maiores centros futebolísticos do Brasil. Os embates entre os seus representantes, sejam times ou seleções, tinham extensa repercussão na imprensa nacional para se decidir qual era de fato o grande pólo do futebol brasileiro. Foi nesse cenário que surgiu uma série de disputas entre os campeões de cada estado que foram coletivamente chamadas de Taça dos Campeões Estaduais Rio-São Paulo.

Nesse ponto, é essencial fazer a distinção em relação ao Torneio Rio-São Paulo. Este foi criado em 1933 fruto do nascente profissionalismo, prosseguindo nos anos 40, servindo de base ao "Robertão"/Taça de Prata/Campeonato Brasileiro a partir de 1967 e continuando como um torneio interestadual isolado na década de 1990. Já a Taça dos Campeões Rio-São Paulo é um termo genérico para designar uma espécie de tira-teimas entre os campeões cariocas e paulistas, iniciado com a Taça Salutaris em 1911 e disputado de forma não linear ao longo das décadas seguintes, às vezes de forma oficial, às vezes, amistosa. A última edição, em 1987, foi válida pelo Campeonato Brasileiro.

Essa rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo também foi um dos fatores que prejudicaram uma incipiente integração nacional. Afinal, os vencedores dos confrontos entre eles eram equivocadamente tratados como "campeões brasileiros". Logo, não haveria necessidade de se implementar uma competição verdadeiramente nacional — no máximo com outros representantes do "Sul", como ocorreu com os Torneios dos Campeões de 1920 e 1937. 

Mas e o "Norte"?

Ainda que a valorização "sulista" fosse a visão dominante na mídia nacional, alguns segmentos resistentes reconheciam o valor dos centros "nortistas", colocando-os em condições de rivalizar com Rio de Janeiro e São Paulo — daí surgiram as primeiras discussões acerca de uma competição nacional já desde a década de 1910. Porém, como o Campeonato Brasileiro não saiu do papel nesse primeiro momento, os estados do Norte-Nordeste começaram a organizar as suas próprias disputas. Nesse aspecto, destacam-se os estados do Pará e de Pernambuco como os baluartes do setentrião brasileiro. 

À semelhança do que ocorria com Rio de Janeiro e São Paulo, do confronto que envolvia representantes paraenses e pernambucanos apurava-se o "campeão do Norte". Diferentemente dos torneios norte-nordestinos, oficiais ou amistosos, que surgiriam nas décadas seguintes, com regulamentação e critérios específicos para a sua tipificação, o "campeão do Norte" era um título essencialmente simbólico, definido pelo confronto específico entre os representantes de Pará e Pernambuco, geralmente os campeões estaduais ou selecionados, durante as excursões dos clubes a esses estados, conhecidas como "temporadas".

A primeira vez que isso aconteceu foi quando o Clube do Remo excursionou a Recife (PE) em 1917 para participar dos festejos do Centenário da Revolução Pernambucana de 1817 e conquistou a taça de mesmo nome ao vencer o scratch da Liga Sportiva Pernambucana (LSP) em duas partidas — 4 a 2 em 11/03 e 3 a 2 em 15/03 —, sem precisar do jogo-desempate. Os confrontos marcaram a inauguração do campo oficial da LSP, onde hoje é o estádio dos Aflitos. Ainda nessa excursão, o Remo venceu o América-PE por 2 a 0 e empatou com o Paulista-PE em 2 a 2. Ressalte-se que a ideia inicial era a formação de um campeonato interestadual que contaria ainda com times de Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba.

Diário de Pernambuco, 16/03/1917

É importante destacar que antes disso tudo, o Remo já era retratado pela imprensa pernambucana como campeão do Norte, mas, nesse caso, se referindo à sua região, já que o Leão Azul era o tetracampeão paraense na época. Porém, com a conquista da Taça Centenário, esse título simbólico ganhou uma nova conotação, conferindo ao seu possuidor um status privilegiado de líder das regiões Norte e Nordeste — em outras palavras, do eixo "Norte" — e o "terceiro lugar" entre as potências futebolísticas no cenário nacional, atrás apenas de Rio de Janeiro e São Paulo. Isso é particularmente observado em edições posteriores do Diário de Pernambuco e Estado do Pará, que tratavam da ida de um time pernambucano a Belém em 1919.

A temporada pernambucana na capital paraense foi histórica. O Sport defendeu o seu estado com muita galhardia suplantando o combinado formado por Remo e Paysandu, com um empate e duas vitórias, o que lhe valeu a posse do troféu Leão do Norte, responsável pela origem do mascote rubro-negro. Ainda na sua turnê, o Sport perdeu para o Paysandu por 4 a 0 antes do terceiro jogo contra o combinado. Entretanto, o encontro mais importante era evidentemente contra o Remo, o "campeão do Norte", como ressalta o subtítulo do Estado do Pará, de 06/04/1919: "O campeão do Pará e a scratch pernambucana disputam hoje o último match da temporada sportiva — decidir-se-a a hegemonia que vimos mantendo há três annos".

Estado do Pará, de 06/04/1919

Segundo o jornal, diferentemente do Paysandu, que se valeu do apoio de alguns jogadores azulinos cedidos ao seu time, o Clube do Remo optou por enfrentar o time pernambucano com as próprias forças. Da mesma forma, o Sport se apresentaria com o que tinha de melhor. Assim como em todos os jogos anteriores, o palco do confronto era o Baenão, alvo de todos os olhares da sociedade esportiva paraense, que depositava no esquadrão remista a esperança de defender o prestígio que o Pará possuía. E graças a Chermont, o Remo venceu o "embate de Leões" por 1 a 0, mantendo o seu título de "campeão do Norte", como evidencia o Estado do Pará, de 07/04/1919:

"O Club do Remo, o valoroso campeão da cidade, manteve nobremente o seu renomado título de campeão do norte do Brasil, vencendo hotem galhardamente o conjuncto pernambucano, que aqui viera, de par com estreitar a amizade entre irmãos do mesmo sport, disputar-lhe a fama que se tinha de expoente maximo do septemtrião brasileiro.

A esse título de que toda a família sportiva do Pará se orgulha em ver honrando uma das suas cores valorosas, aqui ficará ainda, como a expressão verdadeira e digna do nosso valor sportivo, da valia dos nossos homens como 'sportsmen', e sobretudo, da maneira leal e desinteressada como aqui se pratica o sport pelo sport".

Estado do Pará, de 07/04/1919

O Diário de Pernambuco, em sua edição de 09/04/1919, corrobora com as informações do Estado do Pará, enfatizando aspectos da rivalidade entre Remo e Paysandu e a conservação do título de "campeão do Norte": "TÉRMINO DA TEMPORADA SPORTIVA — COMMENTARIOS SOBRE O ULTIMO JOGO INTERESTADUAL — O 'CLUB DO REMO' É CONSIDERADO O CAMPEÃO DO NORTE — (...) Finalmente para o Club do Remo, a victoria de hontem teve as suas significações: a primeira conservou-lhe o título de campeão do norte, que o Club do Remo guarda com ufania (...)".

Diário de Pernambuco, 09/04/1919

A decisão mais polêmica foi sem dúvidas a de 1920. Nesse ano, Remo e América-PE organizaram a ida do então bicampeão pernambucano a Belém. Na sua temporada, o América começou empatando com a Seleção da Liga Paraense de Sports Terrestres (LPST) em 1 a 1 e vencendo o Brasil Sport-PA por 1 a 0. Em seguida, partiu para o tão ambicionado confronto contra o Clube do Remo, em 08/02/1920, no Baenão, que decidiria o título de "campeão do Norte", como salientou o Estado do Pará no dia seguinte:

"O encontro marcado para hontem entre os conjunctos campeões do Pará e Recife, Club do Remo e America Foot-ball Club, era sem duvida dos mais auspiciosos e anciosamente esperados, por isto que ia decidir o título de campeão do norte do Brasil que o Remo victoriosamente sustentando".

Estado do Pará, 09/02/1920

Todavia, apesar de toda importância, o jogo foi manchado com um desfecho triste. Quando o Remo alcançou o seu gol, anotado por Dudu Silva, representantes da delegação americana não concordaram com a validação do tento, alegando alguma irregularidade. A equipe alviverde retirou-se de campo. Posteriormente, houve até uma ameaça de retornarem a Recife. Felizmente, graças à intervenção do Governador do Estado e do General Joaquim Ignacio, Remo e América fizeram um acordo cordial e o time pernambucano permaneceu em Belém.

Em seguida, o América perdeu para a Seleção Paraense por 3 a 0, mas venceu o Paysandu por 3 a 2 e o Remo por 2 a 1, em 24/02/1920. Como estava uma vitória para cada lado, o Remo propôs ao América uma partida de desempate no dia seguinte, horas antes do retorno da delegação americana, para definir quem ficaria de posse da taça Joaquim Ignacio e, consequentemente, com o título de "campeão do Norte". Porém, o América não aceitou, alegando que estava com alguns de seus jogadores machucados e que a licença dos seus trabalhos no Recife já havia expirado.

O Remo até tentou prorrogar a estadia pernambucana, considerando uma atitude anti-desportiva por parte do América não aceitar o desafio. Em contrapartida, o Alviverde se defendeu dizendo que ser deplorável essa ameaça e que não seria em uma série de partidas que se conquistaria o título de "campeão do Norte". Entretanto, apesar dessa declaração e da troca de farpas, o América foi considerado pela imprensa pernambucana como o "campeão do Norte" e, inclusive, recebeu homenagens do Jockey Club de Recife, como se observa nas matérias do Diário de Pernambuco.

Diário de Pernambuco, 25/02/1920 

Diário de Pernambuco, 06/03/1920

De qualquer forma, essa parece ser a última vez que esse título simbólico foi disputado, já que não se tem mais referências a ele nos jornais. Isso pode estar relacionado com um processo de enfraquecimento do futebol paraense a partir dos anos 20 em relação ao rival pernambucano e o surgimento de novas forças, como a Bahia a partir da década de 1930. Posteriormente, ao longo das décadas seguintes, surgiram novas competições, amistosas e oficiais, específicas para cada região ou que envolvessem uma disputa inter-regional, como as que o Clube do Remo conquistou entre o final dos anos 60 e início dos 70. Porém, tudo começou com o pioneiro e simbólico título de "campeão do Norte" nos primórdios do futebol brasileiro.

OS "CAMPEÕES DO NORTE"

REMO – "CAMPEÃO DO NORTE" DE 1917 A 1919

AMÉRICA-PE – "CAMPEÃO DO NORTE" DE 1920

domingo, 29 de outubro de 2023

O Primeiro Jogo Internacional

O PRIMEIRO JOGO INTERNACIONAL DO LEÃO FOI CONSEQUÊNCIA DOS DESDOBRAMENTOS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Desde 1913, quando começou a jogar futebol, o Remo já realizou milhares de jogos e, dentre eles, estão dezenas de caráter internacional. Nesse aspecto, destacam-se partidas contra alguns grandes times do futebol sulamericano e europeu e até selecionados de outros países. Porém, a primeira vez que o Leão enfrentou uma equipe estrangeira não foi diante de um time de futebol propriamente dito, mas sim de um navio! Essa história envolve até nuances da Primeira Guerra Mundial...

Os conflitos da Primeira Guerra (1914-18) ocorreram na Europa, envolvendo os Aliados — encabeçados pelo Império Britânico e França — e os Impérios Centrais — liderados por Alemanha e Áustria-Hungria. Mas as suas repercussões foram sentidas no mundo inteiro, incluindo o Brasil. Exemplos disso foram os atos de guerra que levaram ao naufrágio de vários navios na costa brasileira durante aquele período — mais de uma dezena! Um deles era o paquete inglês Van Dyck.

Estado do Pará, 03/11/1914

Construído em 1911, o Van Dyck foi interceptado em 22/10/1914 pelo cruzador alemão Karlsruhe, próximo a Macapá (AP), quando fazia uma travessia de Buenos Aires (ARG) para Nova York (EUA). As mais de 200 pessoas que estavam à bordo do navio — a maioria ingleses e argentinos — foram realocadas para o navio Asuncion, que havia sido capturado um tempo antes, e transportadas para Belém. Dentre elas, estava o Sr. Sidney King.

A Noite (RJ), 03/11/1914

King foi responsável por organizar combinado de jogadores do Van Dyck — algo relativamente comum na época, já que o futebol era tratado como uma espécie de lazer entre os funcionários do navio. Ainda assim, por terem origem inglesa, eram naturalmente mais habituados à prática do futebol, sendo portanto um time forte. Tanto é que, segundo o Estado do Pará, de 08/11/1914, eles haviam obtido várias vitórias em Buenos Aires (ARG).

O mesmo jornal anunciou um match-desafio do combinado contra a Seleção Paraense, mas não se sabe se o mesmo foi realizado. Comprovado mesmo foi o jogo contra o Clube do Remo, disputado no dia 10/11/1914, no estádio da firma Ferreira & Comandita (atual Curuzu). Assim, em uma seleta tarde festiva, o campeão paraense deu combate ao time dos ingleses. As escalações eram as seguintes:

• Remo: Bernardino; Infante e Lulu (capitão); Carlito, Macedo e Nahon; Ludgards, Galdino, Antonico, Rubilar e Dudu Silva.

• Van Dyck: James; Ramsey e Backles; King; Donel; Jansen, Hofferman; Gilwary, Cox e Woliman (capitão). 

Estado do Pará, 10/11/1914

No decorrer da partida, os ingleses — mais habituados com o futebol — começaram atacando, mas encontraram um bom sistema defensivo azulino. Porém, em um desses ataques, o Van Dyck chegou ao seu gol através de um pênalti convertido pelo próprio Sr. King. Entretanto, os azulinos foram valentes e conseguiram o empate através de Galdino ainda no primeiro tempo e só não venceram porque o gol de Rubilar, no segundo, foi anulado pelo juiz Armando Lima. No final, valeu o honroso empate de 1 a 1 diante dos "inventores" do futebol.

Estado do Pará, 12/11/1914

Assim se deu a primeira partida internacional do Clube do Remo. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

A Taça Pará-Rio-São Paulo e a Embrionária Idéia do Campeonato Brasileiro

No final de 1915, Belém vivenciava a proximidade dos festejos dos seus 300 anos — a serem comemorados em 12/01/1916 —, fato que também atingiria o âmbito esportivo. Em suas edições de 28 e 29/11/1915, o jornal Estado do Pará transcreveu matérias passadas dos periódicos cariocas A Noite e A Rua, provavelmente do início do mês de novembro daquele ano, que tratavam sobre o "Festival Pará", uma espécie de evento comemorativo ao tricentenário da capital paraense organizado por membros da bancada paraense do Parlamento Nacional, realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 16/11/1915.

Estado do Pará, 28/11/1915

Estado do Pará, 29/11/1915

Dentro das matérias estava a mensagem do sportman Ulysses Reymar, de 25/10/1915, direcionada às bancadas carioca e paulista para que prestigiassem o "Festival Pará". O objetivo era angariar recursos para a criação da Taça Pará-Rio-São Paulo, um "prêmio de honra" que, segundo Reymar, "congraçará, em primeira mão, o norte, o centro, e o sul do Brasil, levando ao triumpho a bandeira envolvente da nossa tão desejada unificação dos sports". Para tanto, estariam presentes representantes de importantes instituições esportivas, como a Liga Paraense de Foot-Ball, a Liga Metropolitana de Sports Athleticos (RJ), a Associação Paulista de Sports Athleticos, a Federação Brasileira das Sociedades de Remo, e grandes clubes, como o Fluminense, o Flamengo, o Vasco, entre outros.

Infelizmente, apesar de toda essa movimentação, a Taça Pará-Rio-São Paulo jamais saiu do papel. Segundo o Estado do Pará, de 30/11/1915, o grande motivo para isso foi a então recente vitória dos paulistas sobre os cariocas por 8 a 0, em 07/11/1915, na decisão da Taça Rio-São Paulo, o que estremeceu as relações entre ambos. E como a disputa da Taça Pará-Rio-São Paulo exigia uma partida "preliminar" entre Rio de Janeiro e São Paulo — cujo campeão enfrentaria o Pará na "final" —, essa situação foi crucial para a não realização da disputa.

Estado do Pará, 30/11/1915

Em compensação, entre final de 1915 e início de 1916, o Flamengo-RJ — então bicampeão carioca — esteve no Pará, representando o seu estado, para a disputa de uma sequência de amistosos, contra a Seleção Paraense, Remo e Paysandu — foi nessa ocasião, inclusive, que se deu o primeiro jogo interestadual da história do futebol azulino. No final da série, valendo a Taça Tricentenário de Belém — "substituta" da Taça Pará-Rio-São Paulo —, a valente Seleção Paraense assegurou a sua posse graças ao empate sem gols diante dos cariocas, mostrando como o futebol paraense poderia se equiparar ao eixo.

Pode parecer pretensioso, mas, tomando como base as palavras de Ulysses Reymar, a Taça Pará-Rio-São Paulo/Tricentenário de Belém, pela sua ideia de "congregação inter-regional", apresentava características de um embrionário Campeonato Brasileiro. Isso vai ao encontro à matéria "O grande campeonato Brasileiro de Foot-Ball", da revista Vida Sportiva, de 11/05/1918, assinada por A. Santos, que discorre sobre o crescimento do futebol nos estados do Norte-Nordeste — em especial no Pará, seguido por Pernambuco —, o que subsidiaria a disputa de uma competição com os estados do Sul-Sudeste para se definir o campeão do Brasil. Em outra edição, a Vida Sportiva em matéria intitulada "Qual é o Club Campeão do Brasil?", aborda até um modelo de campeonato regionalizado entre os clubes campeões do "Norte" e os campeões do "Sul".

Vida Sportiva, 11/05/1918

Vida Sportiva, 22/02/1919

Um adendo deve ser feito quanto às nomenclaturas regionais. O "Norte", na verdade, diz respeito aos estados do Norte-Nordeste, enquanto que o "Sul" ao Sul-Sudeste. Essa visão dicotômica dividia o mapa futebolístico brasileiro nesses dois grandes eixos e se perpetuaria por décadas à frente.

Outro ponto interessante que merece destaque é que ambos os documentos dão merecido destaque ao Clube do Remo. A hegemonia estadual desde 1913 e o cartaz de "campeão do Norte" desde 1917, o colocavam como a maior força setentrional do país.

Todavia, mais uma vez, nenhuma dessas discussões foi colocada em prática. Provavelmente, isso se deve pelo ideal de superioridade que os centros do "Sul" tinham em relação aos do "Norte", o que reflete-se no desinteresse em realizar um Campeonato Brasileiro de fato. Uma prova disso se deu quando o Paulistano-SP venceu o Torneio dos Campeões Estaduais de 1920, organizado pela Federação Brasileira de Sports — FBS —, sobre Fluminense-RJ e Brasil de Pelotas-RS.

O time paulista foi tratado como "campeão brasileiro", mas isso não foi unanimidade. O jornal Correio da Manhã (RJ), de 30/03/1920, divulgou uma carta de um leitor que assinava como Out-Side, criticando essa competição como representativa de um Campeonato Brasileiro por excluir injustamente os representantes do Norte, novamente destacando os estados de Pará e Pernambuco — fazendo referência inclusive à disputa da Taça Tricentenário de Belém de 1915 —, claramente superiores ao futebol gaúcho — representado no torneio pelo Brasil de Pelotas — naquela época.

Recorte do Correio da Manhã (RJ), 30/03/1920

Essa visão, de certa forma "egocêntrica" do "Sul", impediu uma precoce integração do futebol brasileiro. Somente com as pioneiras conquistas de Atlético-MG e Bahia, vencedores do Torneio dos Campeões de 1937 e da Taça Brasil de 1959, é que se daria conta que o futebol brasileiro não se restringia apenas a Rio de Janeiro e São Paulo. Quem sabe se esse panorama tivesse mudado antes, lá nos primórdios, quando o futebol paraense era uma potência, a hierarquia nacional não tivesse outra configuração?

FONTES:

- Jornal Estado do Pará, 28, 29 e 30/11/1915.
- Jornal Correio da Manhã (RJ), 30/03/1920.
- Revista Vida Sportiva (RJ), 11/05/1918 e 22/02/1919.

sábado, 30 de setembro de 2023

O Primeiro Título Esportivo

No dia 16/11/1911, em homenagem à data de adesão do Pará à República, o Remo conquistou o seu primeiro título do Campeonato Náutico do Pará. A competição teve início às 8h da manhã, obedecendo ao seguinte programa: 

1º páreo — Capitão Tenente Trajano de Carvalho — 1.000 metros — Escaleres — Aprendizes marinheiros.

2º páreo — 1.000 metros — Grupo do Remo — Yoles a 4 remos.

Grupo do Remo — Barco “15 de Agôsto” — Flâmula azul com estrelas brancas. Patrão: C. Jucá; voga: F. Pinheiro; solta-voga: O. Madeira; solta-proa: O. Saltão; e proa: A. Ribeiro.

Tuna Luso Caixeiral — Barco “Vera Cruz” — Flâmula branca. Patrão: J. Carvalho; voga: M. Rezende; solta-voga: A. Souza; solta-proa: E. Silva; proa: A. Moura.

3º páreo — 1.500 metros — Campeonato do Pará — Out-riggers a 6 remos.

Associação Dramática Recreativa Beneficente (A. D. R. B.) — Barco “Ruivinha” — Flâmula encarnada e branca. Patrão: J. Reis; voga: J. Costa; sota-voga: C. Ramos; sota-proa: R. S. Novoa; proa: M. Barbosa.

G. R. — Barco “Grupo do Remo” — Flâmula azul com estrelas brancas. Patrão: J. Danin; voga: G. Mota; sota-voga: E. Teixeira; sota-proa: O. Paz; proa: Luzio Horácio de Lima.

4º páreo — 1.000 metros — Tuna Luso Caixeiral — Yole a 4 remos.

T. L. C. — Barco “Vera Cruz” — Flâmula branca. Patrão: J. C. Carvalho; voga: A. Teixeira; sota-voga: J. Gonçalves; sota-proa: J. Vidigal; proa: F. Santos.

G. R. — Barco “15 de Agôsto” — Flâmula azul com estrelas brancas. Patrão: E. Souza; voga: G. Mota; sota-voga: E. Teixeira; sota-proa: O. Paz e proa: Luzio Horácio de Lima.

5º páreo — 1.000 metros — Associação Dramática e Recreativa — Out-riggers a 4 remos.

T. L. C. — Barco “Luso” — Flâmula branca. Patrão: J. Carvalho; voga: M. Rezende; sota-voga: A. Souza; sota-proa: E. Silva e proa: A. Moura.

G. R. — Barco “Grupo do Remo” — Flâmula azul com estrelas brancas. Patrão R. Travassos; voga: G. La Roque; sota-voga: A. Pinto; sota-proa: S. Poggi; proa: N. Pereira.

A regata iniciou no 2º páreo, já que os concorrentes do 1º não compareceram.

Vencedores:

2º páreo: Tuna. Prêmio: Taça Omega, ofertado pela Goestchel & Cia.

3º páreo (Campeonato do Pará): Remo. Prêmio: Taça Antônio Lemos.

4º páreo: Remo. Prêmio: um par de jarras de mármore da Perfumaria Oriental.

5º páreo: Tuna. Prêmio: Hino da Vitória, bronze cedido pela Perfumaria Universal.

Assim, o Grupo do Remo sagrou-se Campeão Náutico de 1911!

A Origem do Clube do Remo

A CHEGADA DO REMO AO PARÁ

O remo começou a ser praticado no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. No Pará em 1850, por exemplo, já eram realizados “desafios” entre pequenas baleeiras e canoas de alto mar. Entretanto é no início século XX que esse esporte olímpico atinge seu ápice, atraindo vários adeptos e simpatizantes, tanto que diversos clubes tradicionais surgiram nessa época. Em Belém, as regatas eram — e ainda são — realizadas às margens da baía do Guajará, sempre recebendo bons públicos. Alguns clubes já despontavam no esporte como o Clube Esportivo Paraense, o Pará Club, o Clube Guajará e o Sport Club do Pará.

FUNDAÇÃO E PRIMEIROS MOMENTOS

É no contexto de popularização do esporte náutico que começa a história do Maior Clube da Amazônia, fruto de uma dissidência do Sport Club do Pará, a grande potência sócio-desportiva da época. Isso se deu mais especificamente em 1905,  momentos antes da formação de uma regata, quando alguns atletas se desentenderam com seus companheiros e resolveram se desligar do Sport Club. Eles tiveram a ideia de criar uma equipe própria para a prática da canoagem e, com o apoio de outros desportistas, fundaram o Grupo do Remo em 05/02/1905.

Atletas do Grupo do Remo. Acervo de Ítalo Costa

Os detalhes que norteiam o surgimento do Grupo do Remo foram revelados pelo Sr. José Henrique Danin, um dos fundadores, em entrevista à A Província do Pará, no cinquentenário do clube. Segundo o depoimento, o grupo dissidente era composto de sete remadores: o próprio Danin, os irmãos Victor e Raul Engelhard, Vasco Abreu, Eugênio Soares, Narciso Borges e mais um, que seria ou Jean Marechal ou Eduardo Cruz. Sobre o nome do clube, a ideia partiu de Raul Engelhard, mas à priori, a escolha sofreu resistência, pois remo fazia referência à catraia, uma pequena embarcação. Engelhard explicou o motivo, lembrando-se do Rowing Club, da Inglaterra, que conhecera quando estudara na Europa, sendo, então, aceito por todos.

José Henrique Danin em 1955. A Província do Pará, 05/02/1955

A consolidação oficial do clube se deu com a publicação do seu Estatuto no Diário Oficial do Estado, ano XV, nº 4.049, de 09/06/1905, no qual dizia que o Remo se destinaria “a incentivar, estimular e desenvolver por todos os meios a seu alcance o esporte-náutico neste Estado, promovendo regatas sempre que julgar oportuno e seus recursos o permitirem”.

O documento também trazia os nomes 20 sócio-fundadores do Grupo do Remo. São eles: José Henrique Danin, Raul Engelhard, Roberto Figueiredo, Antonio La Roque Andrade, Victor Engelhard, Raimundo Oliveira da Paz, Antonio Borges, Arnaldo R. de Andrade, Manoel C. Pereira de Souza, Ernestino Almeida, Alfredo Vale, José D. Gomes de Castro, José Maria Pinheiro, Luiz Rebelo de Andrade, Manoel José Tavares, Basílio Paes, Palmério T. Pinto, Eurico Pacheco Borges, Narcisco F. Borges, Heliodoro de Brito. Nota-se a ausência de Eugênio Soares, Vasco Abreu, Cruz e Marechal, pois não estavam presentes no momento da assinatura do Estatuto, mas são igualmente fundadores.

Placa exposta na sede social do Clube do Remo em homenagem aos fundadores, listando 21 nomes com inclusão de Eugênio Soares

Logo o Remo passou a incrementar o seu patrimônio. No dia 16/04/1905, nos estaleiros do Sr. M. J. Nunes, no beco do Carmo, foi colocada a quilha da embarcação a qual os azulinos haviam mandado construir. Era uma baleeira feita de madeiras reais e que tinha como medidas oficiais: 9 m de comprimento, por 1,10 m de largura, tendo 1,10 m de boca por 50 cm de pontal. O Remo ainda possuía um barco para treinos e projetava a construção de outras duas.

Em homenagem histórica à adesão do Pará à Independência do Brasil, a data de 15/08/1905 foi escolhida para a inauguração oficial do Grupo do Remo. O jornal A Província do Pará, de 29/09, informou que os azulinos inaugurariam, no dia 01/10, a sua sede náutica, localizada à Rua Siqueira Mendes – antiga Rua do Norte, a primeira de Belém –, com fundos para a baía do Guajará, funcionando também como garagem de barcos. A sede fora alugada junto à Intendência Municipal.

O evento teve início às 9h da manhã. Os convites oficiais ficaram a cargo de Raul e Victor Engelhard. No trapiche da Companhia Amazonas estava atracada uma lancha especial que seria utilizada para o transporte dos convidados ao local da solenidade. Na ocasião, efetuou-se o batismo e o lançamento ao mar da baleeira “Tibiriçá”.

No dia 16/11, o Sport Club do Pará, em parceria com a Intendência Municipal, realizou as regatas comemorativas à adesão do Pará à República. O evento contou com a presença das guarnições dos marinheiros nacionais da caça-torpedeira “Gustavo Sampaio”, do “Comandante Panema” e do “Comandante Oliveira”; amadores do Clube Esportivo Paraense, com duas guarnições, ambas patroadas pelas Srtas. Miriam Cunha e Cecília de Brito; amadores do Sport Club, Pará Club, Associação Dramática Recreativa Beneficente; e os operários do Arsenal de Marituba.

No entanto, a organização da regata criou barreiras que impediram o Grupo do Remo de ingressar na competição. Os integrantes do Grupo então divulgaram uma nota na imprensa para o público relatando o caso. A bordo da lancha “Alice”, partindo da garagem náutica, os azulinos rebocaram os barcos da baía. Ao lado da lancha estava presa uma faixa onde lia-se “excluído do campeonato”. Em saudação ao público, os remistas deram vários tiros de peça e, logo após isso, foram cumprimentar o Pará Club, campeão daquela manhã náutica. 

Passados alguns dias depois do ocorrido, os remistas foram convidados a participar de uma competição no município de Soure, na ilha do Marajó. O Grupo do Remo fez-se presente e competiu com duas canoas: “Flor da Alegria” — vencedora da prova, tripulada por Victor Engelhard, José Aranha Gonçalves e Isidoro Pereira — e “Marocas” — tripulada por José Danin e Raul Engelhard.

Além da área esportiva, os primeiros remistas se dedicaram também aos empreendimentos sociais, como os famosos picnics com seus associados nas proximidades de Belém. Em 14/07/1906, associados e convidados dirigiram-se à ilha de Tatuoca a bordo do vapor “Ipixuna”, agraciados com os acordes de uma excelente orquestra. Contam os jornais da época que, ao embarcarem na ilha do Mosqueiro, os azulinos foram recebidos com grande festa por diversas girândolas e foguetes, além de uma banda que tocava uma animada marcha. Em troca, foram saudados de bordo com tiros de canhões e revólveres.

No dia 07/09/1906, a bordo do vapor “Moa”, o destino foi o sítio Maguary, de propriedade do presidente Antônio José de Pinho. Já em 02/07/1907, os azulinos partiram para o sítio Forangaba, do major Manoel Rodrigues Coimbra, na margem da Estrada de Ferro de Bragança. Nesse ano, a garagem náutica do clube passou a funcionar em um prédio localizado no Boulevard da República, número 79 (atual Av. Boulevard Castilho França). Nessa época, o patrimônio azulino já contava com nove embarcações, entre elas, um out-riggers a 4 remos e um outro out-riggers a 2 remos, ambos importados da Alemanha.

EXTINÇÃO E REORGANIZAÇÃO

Em 1908, o Grupo do Remo passou por uma grande crise, que culminou na sua extinção. Os motivos não são muito claros, mas provavelmente tem relação com a finalização do contrato de aluguel da sede náutica e a realização de um acordo secreto de alguns dirigentes azulinos com o Sport Club do Pará. Fato é que em 14/02/1908, em reunião da Assembléia Geral, o desembargador Alfredo Barradas decretou o Grupo do Remo oficialmente extinto, conforme informa a nota do jornal Folha do Norte, seção Ineditoriais, de 29/03/1908:

"GRUPO DO REMO — Em virtude de deliberação da assembléia geral realizada a 14 de fevereiro último, a diretoria faz ciente a quem interessar possa fica extinto este e que seus associados fizeram acordo com o Esporte Clube do Pará. A diretoria julga nada dever a pessoa alguma; convida, no entanto, quem se julgar seu credor, a apresentar suas contas até o dia 2 de abril próximo, no prédio nº 95, à Rua 13 de Maio, a fim de serem conferidas e pagas. Belém, 28 de março de 1908 — A DIRETORIA".

Uma minoria dos integrantes foi contra a decisão e resolveram "roubar" os barcos que pertenciam ao clube, para que “não caíssem em mãos estranhas”, escondendo-os em um galpão de inflamáveis em Miramar, de propriedade de Francisco Xavier Pinto, com a promessa de retornarem assim que reestruturassem novamente o Grupo do Remo. Reuniões se sucederam, sempre tendo como ponto de encontro o tradicional Café Manduca.

Certa vez, os remadores foram convidados pelo Sr. Oscar Saltão à um passeio, em duas embarcações, cujo destino era Val-de-Cans. No momento em que passavam por Miramar, Saltão sugeriu que parassem a fim de admirar os seus barcos, mas entristeceu-se ao ver o estado de abandono dos materiais para a prática da canoagem. O grande azulino então dirigiu-se aos seus companheiros e perguntou: — Vocês querem levantar o Grupo do Remo? A resposta foi unânime: — Sim! Sob o lema um por todos e todos por um, reforçaram o compromisso em providenciar a tão sonhada volta da extinta sociedade.

Foi então que no dia 15/08/1911, Oscar Saltão, Antonico Silva, Geraldo Mota (Rubilar), Jaime Lima, Cândido Jucá, Harley e Nertan Collet, Severino Poggy, Mário Araújo, Palmério Pinto e Elzeman Magalhães, constituintes do célebre Cordão dos Onze, tornaram-se os heróis da tão famosa reorganização do Grupo do Remo. As nuances desse processo foram abordadas pelos reorganizadores Elzeman Magalhães ao Estado do Pará, em 15/08/1913, e Cândido Jucá à Revista do Clube do Remo, em 31/05/1968. Sobre esse último, segue o relato:

"Éramos 11, seguimos 10 em duas embarcações da Liga Marítima Brasileira, da qual Saltão era o representante, e um a bordo de uma lancha cedida por Mr. Kup, chefe do tráfego da extinta Porto of Pará, a fim de rebocar as embarcações do extinto Clube do Remo para Belém. Partimos de Belém e em cerca de 8 horas estávamos em Miramar, onde fomos recebidos por Chico Xavier, um português amigo, que nos fez o grande favor de manter, sob sua guarda, o patrimônio que íamos buscar. Eram 7 horas da noite quando deixamos a garage com as embarcações devidamente arrumadas".

Placa exposta na sede social em homenagem aos reorganizadores do Clube do Remo

Não demorou muito para que o Grupo do Remo voltasse a fortalecer o esporte paraense. No dia 01/09/1911, o jornal Folha do Norte informou:

GRUPO DO REMO — Devendo realizar-se em 16 de novembro próximo as regatas, e achando-se reorganizado este Grupo, convida-se os srs. Consórcios a comparecerem, a 7 de setembro, para uma reunião a tratar-se da organização das respectivas guarnições às 8 horas da manhã, na sede do Grupo, ao Largo da Sé”.

No dia 16/11/1911, o Remo conquistou o Campeonato Paraense de Regatas, o primeiro título da história do clube. Posteriormente, os azulinos conquistariam todos os títulos disputados até 1918.

O Imparcial (RJ), 14/02/1914

De acordo com a ata nº 1 da Sessão Ordinária da Diretoria, de 29/12/1911, o Sr. Oscar Saltão propôs a mudança de nome de Grupo para Clube do Remo. Entretanto, esse assunto ficou de ser melhor debatido pela Assembléia Geral em outra oportunidade. As atas das reuniões posteriores mantiveram o nome de Grupo do Remo até a de nº 24, de 03/04/1914, quando pela primeira vez foi oficialmente lavrada a nova denominação de Clube do Remo — ainda que algumas publicações da época já utilizassem essa versão. A alteração representou transição de uma equipe dedicada somente à canoagem que cresceu ao status de clube, passando a abranger outros esportes, entre eles o futebol. 

A Reorganização de 1911, por Elzeman Magalhães

No dia 15/08/1913, o Estado do Pará publicou o texto “Rowing”, escrito por Elzeman Magalhães, que assinou com o pseudônimo de Elzamag, sobre a Reorganização do Grupo do Remo:

"Devido ao nosso meio, em que coisas de esporte são tratadas com desprêzo e sem a mínima consideração, pelos nossos homens que podem, o Grupo do Remo, depois de um verdadeiro jôgo de QUEM DER MAIS, em que naturalmente saiu vencedor o burguês ricaço e ambicioso que precisava da casa para explorar um monopólio, que felizmente morreu esta nossa importante sociedade náutica, ficou sem garagem. Neste tempo era presidente do Grupo o conhecido Rower da 'guarda velha' Raul Engelhard, que tudo fêz para conseguir uma casa que servisse para uma garagem de canoagem. Coisa impossível! Não havia em Belém! As casas que ficam à beira-mar estavam tôdas ocupadas.

E assim, devido às exigências de um proprietário e à ganância de um ÁGUIA, tivemos que sacudir os nossos barcos para MIRAMAR onde foi Entreposto de Inflamáveis. Passou um ano e do Grupo do Remo, a única sociedade exclusivamente náutica que Belém possuía, só restava os seus barcos jogados em um armazém, estragando-se à falta de trato. E tudo isso porque no Pará os homens que podem... são os primeiros a prejudicar a boa marcha das sociedades esportivas, completamente ao contrário do que se faz no Sul, onde já se compreende o que é esporte em geral. Foi num domingo, a convite de Oscar Saltão, êste verdadeiro apaixonado do nosso querido Grupo, que em duas embarcações saímos a passeio até Val-de-Cães. Ao passarmos por MIRAMAR, tivemos a boa lembrança de pararmos aí, a fim de vermos os nossos barcos. Que impressão triste e desagradável nos causou o estado de abandono em que se achava o nosso material de canoagem servindo até de CURRAL de cabras. Saltão, com olhar triste, demonstrando bem o que lhe ia na alma; olhou-nos e disse: – Vocês querem levantar o GRUPO DO REMO?

Todos responderam que SIM, e onze rapazes tomaram o compromisso de levantar a nossa veterana sociedade. Desde aquêle domingo, começou de nôvo a nossa tentativa de reorganizar o Grupo, tarefa muito difícil, que muito trabalho deu, mas havia um compromisso de honra entre os onze Rowers do Grupo, e por isso saímos vitoriosos. Depois de várias tentativas e cavações conseguimos casa para a garagem.

O principal estava feito, foi um delírio entre os rowers do Grupo quando o Saltão, sempre incansável, participou a nova, até o Felinto "morreu no chope do 'Tartaruga'.

E não perdendo tempo, arranjou-se uma lancha, e no dia 15 de agôsto de 1911, às 6 e meia da manhã, seguiu para o Entreposto o célebre cordão dos onze a fim de trazer o material do Grupo. Os ONZE assim constituídos: Oscar Saltão, Antonico Silva, Geraldo Mota (Rubilar), Jaime Lima, Cândido Jucá, Harley e Nertan Collet, Severino Poggy, Mário Araújo, Palmério Pinto e quem escreve essas linhas, não tiveram fôrça a medir, só pensando em vencer, acabaram aquela inesquecível MUDANÇA dum completo material de canoagem às 7 horas da noite. O que foi aquêle trabalho, basta repetir a frase do mestre da lancha, velho português acostumado nas lutas pela vida, que bem demonstrava a sua admiração pelo esfôrço daqueles Rowers:

'Êstes moços sabem pegar no pesado como a gente.'

Saltão e seus companheiros muita satisfação sentirão no dia de hoje, que marca o segundo aniversário da reorganização do nosso Grupo, que se encontra atualmente com franca prosperidade, vendo que seus esforços não foram baldados.

Terminando estas ligeiras notas sôbre a reorganização da nossa sociedade, o humilde rabiscador das mesmas não teve outro intuito a não ser o de mostrar ao público de sua terra como se luta aqui neste nosso Estado, que temos orgulho de dizer que é o melhor depois de Rio e São Paulo, com uma sociedade esportiva, e que possa calcular a fôrça da vontade que tiveram êsses ONZE moços que só tiveram por auxílio o tema de 'UM POR TODOS E TODOS POR UM', como num verdadeiro time de futebol.

À diretoria atual, os nossos cumprimentos pela data de hoje e pelo muito que tem feito a bem do progresso moral e material do nosso querido 'GRUPO DO REMO', campeão de remo no Pará de 1911, 1912, 1913".

O Primeiro Estatuto do Remo

Diário Oficial do Estado, Ano XV, N. 4.049, de 09/06/1905:

I) ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Art. 1.º – Fica fundada na cidade de Belém do Pará a sociedade Clube do Remo que se destinará:

§ 1.º. A incentivar, estimular e desenvolver por todos os meios a seu alcance o esporte-náutico neste Estado, promovendo regatas sempre que julgar oportuno e seus recursos o permitirem:

§ 2.º. A promover quaisquer outras diversões marítimas que tenham por objeto não só proporcionar aos seus associados útil e proveitosa distração como também alimentar o gôsto por esta especialidade esportiva.

Art.2.º – Não obstante ser êste o fim principalmente da associação, fica entretanto subentendido que não ficam excluídas do seu seio outras distrações nas quais possa encontrar incremento para a sua prosperidade e elementos para mais cabalmente preencher o fim a que é destinada.

Art.3.º – O Clube do Remo será administrado por uma diretoria composta de três membros, eleito anualmente na última quinzena de dezembro; essa diretoria compor-se-á de presidente, tesoureiro e secretário, cargos que poderão ser ocupados por qualquer um dos três eleitos, conforme êles entre si deliberarem.

Art.4.º – As obrigações e atribuições de cada um dêstes funcionários acham-se perfeitamente delimitadas pela própria natureza dos seus respectivos cargos; convém entretanto observar que a iniciativa de tôdas as resoluções caberá particularmente ao presidente, que será por assim dizer o centro executivo de tôdas as deliberações.

Art.5.º – Só poderão ser diretores do Clube os sócios escolhidos entre os 20 fundadores.

II) ASSEMBLÉIA GERAL

Art.6.º – A assembléia geral ordinária se constituirá legalmente, podendo deliberar sôbre qualquer assunto que não envolva alteração ou modificação d’êstes estatutos sempre que se acharem presente quinze sócios, convocados pela imprensa, pela diretoria, ou por cinco quaisquer sócios no gôzo dos seus direitos, por intermédio da diretoria.

Art.7.º – Para alterar disposição estatual tornar-se-á mister a presença do dôbro de associados, sem o que será nula qualquer resolução n’êsse sentido.

Art.8.º – Comporá a mesa de assembléia geral um presidente aclamado na ocasião, que chamará para auxiliá-lo dois secretários.

Art.9.º – A assembléia geral reunir-se-á ordinàriamente na última quinzena de dezembro, para eleger a diretoria e tomar conta aos seus atos, e extraordinariamente sempre que se tornar mister, de acôrdo com o art.6.º.

III) DOS SÓCIOS

Art.10.º – Para ser sócio do Clube do Remo é preciso ter sido proposto por três membros classeS dos sócios: efetivos, honorários e beneméritos.

§ 1.°. Será sócio efetivo quem fôr aceito nos têrmos do art.10.°, pagar a jóia de 20$000 e a mensalidade de 10$000.

§ 2.°. Sócio honorário, aquêle que a diretoria julgar digno dessa distinção pela posição eminente que ocupe em qualquer esfera de atividade.

§ 3.°. Sócio benemérito, quem prestar serviços relevantes ao clube, a juízo da assembléia geral.

Art.12.º – Todo e qualquer sócio tem o direito de tomar parte nas regatas e quaisquer diversões promovidas pela sociedade; naquelas, porém, terá de sujeitar-se a deliberação da diretoria, que designará a modo as condições em que concorrerá ao certame.

Art.13.º – Perderá o direito de sócio todo aquêle que deixar de pagar três mensalidades.

IV) DISPOSIÇÕES GERAIS

Art.14.º – Para os casos omissos ou obscuros dêstes estatutos e para a organização de regatas, servirão de elemento subsidiário, para serem observados com fôrça de lei os estatutos e código da Federação Brasileira, das sociedades do Remo.

Art.15.º – A bandeira do Clube do Remo se comporá d’um retângulo azul marinho, tendo no centro uma âncora branca, em sentido oblíquo, circulada por treze estrêlas da mesma côr.

SÓCIOS FUNDADORES

1 JOSÉ HENRIQUE DANIN

2 RAUL ENGELHARD

3 ROBERTO FIGUEIREDO

4 ANTÔNIO LA ROQUE ANDRADE

5 VICTOR ENGELHARD

6 RAIMUNDO OLIVEIRA DA PAZ

7 ANTÔNIO BORGES

8 ARNALDO R. DE ANDRADE

9 MANOEL C. PEREIRA DE SOUZA

10 ERNESTINO ALMEIDA

11 ALFREDO VALE

12 JOSÉ D. GOMES DE CASTRO

13 JOSÉ MARIA PINHEIRO

14 LUÍS REBELLO DE ANDRADE

15 MANOEL JOSÉ TAVARES

16 BASÍLIO PAES

17 PALMÉRIO T. PINTO

18 EURICO PACHECO BORGES

19 NARCISO F. BROGES

20 DR. HELIODORO DE BRITO

sábado, 23 de setembro de 2023

Uma Discussão sobre a Legitimidade dos Títulos Azulinos

CLUBE DO REMO, TRICAMPEÃO DO NORTE (1968, 1969 E 1971) E CAMPEÃO NORTE-NORTE (1971). Não deveria, mas o que era pra ser tratado como uma verdade absoluta, infelizmente é motivo de polêmicas acerca da incontestável legitimidade dessas conquistas, municiadas por discursos rasos e clubísticos inerentes à rivalidade. Mas contra qualquer tipo de falácia, nada melhor do que a informação bem argumentada. Essa é a grande razão da existência desse texto: dar luz aos fatos que permeiam um dos momentos mais gloriosos da história do Clube do Remo.

CONTEXTO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO DO FUTEBOL BRASILEIRO

Apesar de algumas teorias divergentes, classicamente se considera que a história do futebol no Brasil começou com Charles Miller em 1895, em São Paulo, onde também foi organizado o primeiro campeonato estadual em 1902. Posteriormente, outros estados começaram a desenvolver o esporte em seus territórios, destacando-se o Pará, que possui o quarto estadual mais antigo do país (1908), atrás apenas do já citado estado de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

Influenciado pelo Ciclo da Borracha, o Pará logo surgiu como uma potência no futebol brasileiro, fazendo uma espécie de contraposição ao eixo Rio-São Paulo. Prova disso, foi a tentativa de criação da Taça Pará-Rio-São Paulo em 1915, que envolveria os clubes de cada estado. A iniciativa não vingou; em compensação, o Flamengo, campeão carioca, excursionou a Belém para uma série de jogos entre dezembro de 1915 e janeiro de 1916, dentre os quais destacam-se dois empates contra a Seleção Paraense e uma vitória apertada de 3 a 2 contra o Remo, sendo essa a primeira partida interestadual da história azulina.

Naquela época, excursões extensas como essa — do Rio de Janeiro a Belém — eram custosas, considerando a precária infraestrutura de transportes e comunicações em um país de dimensões continentais no início do século XX. Dessa forma, as relações interestaduais eram mais facilitadas em estados próximos. Isso contribuiu para que o mapa do futebol brasileiro fosse dividido em dois eixos: o "Norte" — composto pelas regiões Norte-Nordeste — e o "Sul" — pelas regiões Sudeste e Sul.

Foi dessa divisão imaginária que surgiram as disputas e identidades regionais. O Clube do Remo, na condição de principal equipe paraense, tanto que arremataria um heptacampeonato de 1913 a 1919, realizou a sua primeira excursão interestadual no final de 1916, início de 1917, quando foi ao Maranhão, atropelando os melhores representantes locais. Nesse mesmo ano, em março, os azulinos foram convidados a Recife (PE) para disputar a taça comemorativa ao centenário da Revolução Pernambucana de 1817, conquistando-a em dois jogos contra a Seleção Pernambucana. Com esses resultados, o Remo foi simbolicamente condecorado "Campeão do Norte", título reafirmado em 1919 com a vitória sobre o Sport em sua excursão a Belém.

Diário de Pernambuco, 09/04/1919

Nesse ínterim já havia a discussão da criação de um Campeonato Brasileiro, conforme pode ser observado na matéria "O Grande Campeonato Brasileiro de Foot-ball", da revista Vida Sportiva (RJ), de 11/05/1918. A publicação, assinada por A. Santos, defendia uma competição que envolvesse os campeões das dois melhores estados do "Norte" — Remo (PA) e Sport (PE) — contra os dois melhores do "Sul" — Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, devido ao egocentrismo e politicagem dos times do "eixo", essa ideia — assim como a Taça Pará-Rio-São Paulo de 1915 —, não chegou a sair do papel.

Vida Sportiva (RJ), 11/05/1918

Em 1920, a Confederação Brasileira de Desportos — CBD —, fundada em 1916 a partir da Federação Brasileira de Sports — FBS —, criou o Campeonato Brasileiro de Clubes Campeões, que envolveu os campeões paulista (Paulistano), carioca (Fluminense) e gaúcho (Brasil de Pelotas). O objetivo era observar jogadores para a Seleção Brasileira que disputaria o Campeonato Sulamericano. Com apenas três jogos realizados, o título ficou com o Paulistano, que foi considerado "Campeão do Brasil" pela grande mídia. Porém, isso não era uma visão unânime, como se observa no recorte do jornal Correio da Manhã (RJ), de 30/03/1920, que traz a carta de um leitor assinado como Out-Side, criticando essa competição como representativa de um Campeonato Brasileiro justamente por excluir os representantes do Norte (Pará e Pernambuco), considerados superiores ao futebol gaúcho.

Correio da Manhã (RJ), 30/03/1920

O Campeonato Brasileiro surge de fato em 1922. Não era o de clubes, mas o de seleções estaduais. Nessa competição, cada estado montava a sua seleção com os melhores valores que jogavam em seus territórios. Os jogos geralmente se davam em fases regionalizadas, com o cruzamento inter-regional posterior até a final. Nessa primeira década de disputas, o Pará mostrou-se como uma das grandes forças do país, sendo quatro vezes semifinalista (1925, 1926, 1928 e 1929). 

Seleção Paraense que disputou o Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais de 1925. A Semana (PA), 23/08/1925

Esse período foi chamado de amadorismo, quando o futebol era visto como uma espécie de lazer, uma atividade secundária dos jogadores, que exerciam outras profissões em suas vidas. Esses jogadores eram chamados de sportman. Entretanto, o Brasil começou a perder grandes valores para outros países, que formavam contratos remunerados com os seus jogadores. Isso forçou o movimento para a implantação do profissionalismo do futebol brasileiro. Disso, surgiu a Federação Brasileira de Futebol — FBF — em 1933.

Pró-profissionalismo, a FBF era uma oposição à CBD, que ainda mantinha raízes amadorismo. Dessa dicotomia, o futebol brasileiro sofreu uma cisão. Em 1933, a FBF organizou o primeiro Torneio Rio-São Paulo e o seu próprio Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, que foi disputado em paralelo ao campeonato da CBD, também em 1934 e 1935. A FBF, porém, não gozava do mesmo prestígio e força da CBD, não realizando o seu campeonato em 1936, mas o promoveu em 1937, readaptando-o para os clubes campeões de suas federações estaduais filiadas. Foi assim criado o Torneio dos Campeões, vencido pelo Atlético-MG.

Com a pacificação e a reaproximação das entidades, em 1937 a CBD englobou a FBF, mas esta continuaria comandando o futebol brasileiro, agora profissional. O Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais voltou a ser a única competição nacional do país, sendo organizado pela FBF até 1941, quando essa entidade foi oficialmente extinta, e posteriormente pela CBD.

Devido a criação da Copa Libertadores da América em 1960 — na época, chamada de Copa dos Campeões da América —, a CBD se viu obrigada a criar uma competição realmente nacional de clubes para decidir o seu representante no torneio continental. Foi assim que surgiu, em 1959, a Taça Brasil, que teve como primeiro campeão o Bahia. A Taça Brasil bebeu da fonte do seu antecessor, o Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, aproveitando o modelo de disputas regionalizadas, dividindo-se em dois grupos: o Norte, pelas equipes do Norte e Nordeste, e o Sul, pelas demais equipes., obedecendo o antigo mapa futebolístico brasileiro.

Havia um adendo quanto à questão do grupo Norte. Segundo o regulamento da Taça Brasil divulgado no Jornal dos Sports (RJ), de 17/03/1959, paralelamente ao grupo Norte, seria disputada a Taça Norte, oferecida ao campeão do grupo. Assim, estabelecia-se o primeiro título regional/inter-regional oficial do Norte-Nordeste, organizado pela gestora do futebol brasileiro e respaldado no seu regulamento. Até então, todas as disputas nesse caráter, como o Torneio dos Campeões do Norte (1948) e o Torneio dos Campeões do Norte-Nordeste (1951), apesar de extremamente relevantes e contarem com o apoio dos clubes e federações estaduais participantes, não tinham a real chancela da CBD.

Jornal dos Sports, 17/03/1959. Blog do Cássio Zirpoli

Com o passar do tempo, a Taça Brasil foi perdendo o interesse dos "grandes" clubes pelas disputas regionais deficitárias financeiramente. Dessa situação, em 1967 as federações carioca e paulista, resolveram ampliar o Torneio Rio-São Paulo com a inclusão de times de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, criando assim o Torneio Roberto Gomes Pedrosa — que era o nome oficial do Torneio Rio-São Paulo —, o "Robertão". Em 1968, a CBD passou a organizar a competição, incluindo, por força política, um time pernambucano e um baiano, renomeando-a para Taça de Prata. O "Robertão"/Taça de Prata foi disputado(a) paralelamente à Taça Brasil até a extinção desta em 1968.

Para "compensar" os clubes não contemplados nessa "elite", a CBD criou os Torneios Norte-Nordeste e Centro-Sul. Este só foi disputado uma única vez, em 1968, enquanto que o Norte-Nordeste teve continuidade até 1970, inspirando-se no Torneio Hexagonal Norte-Nordeste realizado em 1967 com clubes de Pernambuco (Santa Cruz e Sport), Pará (Remo e Paysandu) e Ceará (Ceará e América), em iniciativa do empresário pernambucano Hélio Pinto, com suporte das federações participantes. O desejo era fazer o confronto entre o campeão do Hexagonal — Santa Cruz; o Remo foi o vice —, e do "Robertão" — Palmeiras —, para se decidir o campeão brasileiro.

Diário de Pernambuco, 11/03/1967

Essa ideia motivou a CBD a criar o Torneio dos Campeões em 1968 — disputado no início de 1969 —, que envolvia os campeões de todas as suas competições: Taça Brasil (Botafogo), "Robertão" (Santos), Torneio Norte-Nordeste (Sport) e Torneio Centro-Sul (Grêmio Maringá-PR). Por falta de interesse de Botafogo e Santos, Sport e Maringá disputaram o título, que ficou com o time paranaense. Oficialmente, se for seguir à risca o regulamento, o Maringá deveria ser o campeão brasileiro de fato em 1969. Entretanto, a falta de prestígio do torneio, que só teve uma edição, e a própria extinção do clube paranaense posteriormente, fez a competição cair no esquecimento.

Diário de Notícias (RJ), 06/12/1967

Voltando ao caso específico do Torneio Norte-Nordeste, a sua realização foi considerada um sucesso, almejado pelos clubes integrantes e suas torcidas, rendendo grandes espaços nas imprensas esportivas, sendo popularmente conhecido como "Nordestão". É importante ressaltar que ele era dividido em duas disputas específicas — os Torneios do Norte e do Nordeste —, cujos campeões disputavam a final inter-regional. O Remo foi duas vezes o campeão do Norte, em 1968 e 1969, disputando as finais do Norte-Nordeste contra Sport e Ceará, respectivamente, mas, infelizmente perdeu ambas.

Em 1971, a CBD instituiu o primeiro Campeonato Nacional de Futebol Profissional. Apesar de seguir a linha de raciocínio governamental de "integração nacional", o campeonato manteve os privilégios de outrora. A Taça de Prata foi a base da Divisão Extra, que equivale à atual Série A, a elite do futebol brasileiro, ao passo que a Primeira Divisão — Série B —, englobou os Torneios Norte-Nordeste e Centro-Sul, nos quais os campeões realizaram a final nacional. Nesse caminho, o Clube do Remo foi tricampeão do Norte e campeão Norte-Nordeste, mas acabou ficando com o vice da Primeira Divisão.

A LEGITIMIDADE DOS TÍTULOS AZULINOS

Como se observa, desde os primórdios o Clube do Remo já carregava consigo o título de "Campeão do Norte", decorrente das suas grandes vitórias em excursões pelo Norte-Nordeste, colocando-os como a maior força em oposição ao eixo Sul nos tempos do amadorismo. Entretanto, esse título era mais simbólico do que oficial. Isso só mudaria com a institucionalização do Torneio Norte-Nordeste a partir de 1968, quando o Leão alcançou o bicampeonato do Norte em 1968 e 1969, prosseguindo com o tri e o Norte-Nordeste em 1971.

O grande argumento dos críticos em relação às conquistas azulinas é de que elas não passavam de meras fases de torneios maiores. Poderia até ser verdade se essas competições não tivessem a sua legitimidade respaldada nos regulamentos e documentos oficiais da CBD, caso semelhante ao da Taça Norte anexa à Taça Brasil, como visto a seguir. Didaticamente, para melhor entendimento do tema, o prefixo "torneio" será utilizado na abordagem das conquistas relacionadas ao Torneio Norte-Nordeste, enquanto que o prefixo "campeonato" naquelas relacionadas ao Campeonato Nacional.

Torneio do Norte (1968-1969)

Como o Torneio do Norte faz parte do Torneio Norte-Nordeste é necessário se ater à análise do regulamento deste. Em 25/07/1968, o jornal Diário de Pernambuco divulgou o documento na íntegra. Atenção especial deve ser dada ao 21º que diz o seguinte:

"O Torneio será disputado organizando-se duas tabelas distintas para cada região, com o objetivo de apurar o campeão regional. Os dois campeões regionais, disputarão o título de Campeão do Torneio, na fase final, em melhor de quatro (4) pontos".

Diário de Pernambuco, 25/07/1968

A leitura desse artigo é clara, indicando a disputa dos títulos regionais anexos ao torneio inter-regional, onde o “Campeão do Norte” encararia o “Campeão do Nordeste” para apurar o "título final" de "Campeão Norte-Nordeste".

Essa interpretação vai em concordância à ata da reunião entre os representantes clubes nordestinos e da CBD, divulgada no Diário de Pernambuco, de 20/12/1968, da qual se destaca o seguinte:

"d) classificam-se 2 (dois) Clube em cada grupo para o turno final que será disputado em turno e returno, para apontar o campeão da Região Nordeste.

e) o vencedor disputará com o campeão da Região Norte para apurar o vencedor (campeão) do TORNEIO NORTE-NORDESTE".

Diário de Pernambuco, 20/12/1968

Por fim, o Relatório da CBD de 1968 reitera com a seguinte nota:

"De acordo com a proposta do Departamento de Futebol, aprovada pela Diretoria, os jogos finais entre o Recife, campeão do Nordeste e o Remo, campeão do Norte, para apurar o Campeão do TORNEIO NORTE-NORDESTE, foram transferidos para o primeiro trimestre próximo".

Campeonato do Norte e Campeonato Norte-Nordeste (1971)

Ao ser incorporado ao Campeonato Nacional de Clubes em 1971, o Norte-Nordeste passou a ser regido pelo regulamento do certame nacional, que foi divulgado pelo Jornal dos Sports (RJ), em 05/02/1971. Sobre a parte que trata da Primeira Divisão, destacam-se os seguintes artigos:

"5.º - O campeonato da PRIMEIRA DIVISÃO será disputado por Associações agrupadas em duas REGIÕES, assim denominadas: 'NORTE-NORDESTE' e 'CENTRO-SUL'. Dentro de cada uma dessas REGIÕES podem as Associações ser subdivididas em grupos ou subgrupos.

6.º - As Associações participantes do campeonato da PRIMEIRA DIVISÃO serão indicadas pelas Federações integrantes das respectivas REGIÕES, que se basearão nos resultados dos campeonatos estaduais ou de torneios especiais realizados com a finalidade específica de escolha dos participantes no campeonato nacional.

7.º - À Associação vencedora e à segunda colocada de cada REGIÃO da PRIMEIRA DIVISÃO, atribuir-se-ão, respectivamente, os títulos de CAMPEÃ e VICE-CAMPEÃ DA REGIÃO de que participem, conferindo-lhes diplomas correspondentes.

8.º - A Associação vencedora da REGIÃO NORTE-NORDESTE disputará, na forma do respectivo regulamento com a vencedora da REGIÃO CENTRO-SUL, o título de CAMPEÃ DA PRIMEIRA DIVISÃO".

Jornal dos Sports (RJ), 05/02/1971

A conceituada revista Placar, em sua edição de 13/12/1971, também faz considerações acerca do regulamento da Primeira Divisão do Campeonato Nacional:

"2 — Os clubes serão agrupados em duas regiões: Norte-Nordeste e Centro-Sul.

3 — Os vencedores de cada região terão os títulos de campeão e vice-campeão.

4 — Disputam-se as Taças Norte-Nordeste e Centro-Sul (únicas decisões da CBD)".

Placar, 13/12/1971

À priori, com base nessas informações, é possível assegurar a legitimidade do Campeonato Norte-Nordeste. Mas e com relação ao Campeonato do Norte? Nesse caso, se faz necessária a leitura do Relatório da CBD de 1971, que dispõe:

"O Torneio Norte-Nordeste constituiu-se de Fase Regional, Fase Semi-Final, em Turno e Returno, divididos os clubes em três grupos e Fase Final também em dois Turnos, apurando-se o Campeão da Região Norte que foi o CLUBE DO REMO e o da Região Nordeste a ASSOCIAÇÃO OLÍMPICA ITABAIANA, logrando sagrar-se campeão do Torneio Norte-Nordeste o CLUBE DO REMO, da Federação Paraense de Futebol".

Relatório da CBD, 1971

Outra fonte que indiretamente retrata sobre essas conquistas é o jornal O Serrano (SE), de 06/05/1972, que traz a transcrição de uma nota do Boletim da CBD, revista oficial da entidade, parabenizando o Itabaiana-SE pelo título de campeão do Nordeste:

"Primeiro título nacional de um clube sergipano: O Itabaiana tornou-se campeão nordestino do Campeonato Brasileiro da Primeira Divisão. Os parabéns da Confederação e dos amigos do futebol sergipano".

O Serrano (SE), 06/05/1972

Assim, se, para a CBD, o título nordestino era legítimo a ponto de gerar uma homenagem em um veículo oficial da entidade, o título nortista — Campeonato do Norte — também deveria ser considerado como tal.

RELEVÂNCIA E ABRANGÊNCIA

Diante disso, não há dúvidas da oficialidade dos títulos remistas, assegurados pelos documentos oficiais da entidade responsável pela gestão do futebol brasileiro na época, a CBD. Isso, por si só, já encerraria qualquer discussão, mas ainda não é o bastante. É necessário comprovar toda a magnitude e importância de cada uma das conquistas. Nesse aspecto, a imprensa exerce um papel fundamental de documentação e preservação da memória. Os principais jornais paraenses — O Liberal, A Província do Pará e Folha Vespertina — fizeram ampla cobertura das conquistas, como pode ser observado na simples leitura nas matérias desses jornais:

A Província do Pará, 15/02/1969

A Província do Pará, 11/12/1969

Folha Vespertina (PA), 29/11/1971

A Província do Pará, 10/12/1971

É importante destacar ainda que esses títulos não foram importantes apenas para o Clube do Remo, mas para todo o futebol paraense, ao ponto de até os torcedores rivais — Paysandu e Tuna — deixarem de lado as suas cores e paixões clubísticas para fazer parte da maioria. Sabiam que, com as conquistas azulinas, o futebol paraense romperia as suas fronteiras para alçar outros patamares, tendo o Clube do Remo na vanguarda desse processo. Tanto é que nas festas de comemoração dos títulos — os famosos "Clássicos das Faixas" —, o Paysandu não só participou, como promoveu a entrega das faixas de campeão ao Remo, evidenciando todo o respeito e reconhecimento que possuíam.

O Liberal (PA), 14/02/1969

Gazeta de Sergipe, 12/12/1971

Tudo isso talvez possa ser justificado pelos frequentes insucessos dos clubes paraenses nos torneios inter-regionais, especialmente com a realização da Taça Norte anexa à Taça Brasil entre 1959 e 1967 — nas duas oportunidades que teve, em 1961 e 1965, o Clube do Remo sucumbiu diante de Fortaleza-CE e Náutico-PE. A Taça Norte foi tão almejada que os seus campeões organizaram em 1966 o Torneio Pentagonal dos Campeões do Norte, vencido pelo Náutico, que não contou com nenhum nortista de fato. Tanto é que um dos diferenciais do Torneio Hexagonal Norte-Nordeste de 1967 foi justamente a participação dos paraenses, mas novamente o título ficou com o Nordeste. Por isso que os títulos do Clube do Remo, especialmente o de 1971, representou uma espécie de libertação do futebol do Pará após anos de fracassos.

Mas não eram apenas os paraenses que valorizavam essas competições. Todos os participantes as almejavam e aqueles que as conquistavam, faziam questão de festejá-las e valorizá-las, independente do time, estado, região... Para ilustrar essa situação, basta recorrer aos jornais locais dos clubes que conquistaram os títulos paralelos aos azulinos, no caso os Torneios do Nordeste de 1968 e 1969, conquistados por Sport-PE e Ceará, respectivamente, do Campeonato do Nordeste de 1971, arrematado pelo Itabaiana-SE, e o Torneio do Centro de 1968 e do Centro-Sul de 1971, obtido pelo Villa Nova-MG.

Diário de Pernambuco, 24/12/1968

Correio do Ceará, 09/12/1969. Cortesia de Thiago Eloi (CE)

Gazeta de Sergipe, 25/11/1971. Cortesia de Matheus Lima (SE)

Diário da Tarde (MG), 13/12/1971. Cortesia de Wagner Freitas (MG)

Apesar desses campeonatos envolverem apenas as regiões Norte e Nordeste, eles impactaram também nos grandes veículos da imprensas nacionais, inclusive as seletivas do eixo Rio-São Paulo. Abaixo, seguem exemplos de conhecidos periódicos cariocas e paulistas que fizeram referência aos títulos do Clube do Remo:

Jornal dos Sports (RJ), 23/02/1969

A Luta Democrática (RJ), 18/12/1971

Folha do São Paulo, 13/12/1971

Jornal dos Sports (RJ), 10/09/1972

E AS TAÇAS?

Outro ponto que merece explicações é a "inexistência" das taças dessas conquistas. Parece óbvio, mas é fundamental ressaltar que não é pela falta de um troféu que um título não seja válido. Exemplos clássicos os títulos da Taça Brasil de 1966, da Supercopa do Brasil de 1991 pelo Corinthians-SP e da Copa CONMEBOL de 1993 pelo Botafogo-RJ. Em todas as ocasiões, os vencedores não receberam taças, mas seria absurdo não considerá-los campeões.

O que acontece é que muitos campeonatos no passado não premiaram seus vencedores. No caso dos torneios regionais, era comum que os clubes mandassem confeccionar faixas simbólicas alusivas aos títulos. Não apenas o Remo nos famosos "Clássicos das Faixas", mas Sport-PE e Ceará e Fortaleza, também fizeram. No caso do clube pernambucano, até carnaval fora de época e eleição da "Seleção do Nordestão" ocorreram, em homenagem ao título leonino. Já em relação ao cearense, foi promovido um amistoso contra o Flamengo na festa do título.

A Província do Pará, 16/12/1969

O Liberal, 13/12/1971

Diário de Pernambuco, 29/12/1968

O mesmo Diário de Pernambuco, de 14/12/1969, noticiou a festa do Ceará pelo título do Nordeste daquele ano, com direito à presença do Flamengo

Todavia, não quer dizer que o Filho da Glória e do Triunfo não tenha tido realmente um troféu. Segundo A Província do Pará, na decisão do Norte-Nordeste de 1971, o Remo foi agraciado com uma taça entregue pelas mãos do presidente da Federação Paraense de Futebol (FPF). Infelizmente, talvez pela falta de cuidado e preservação da história/memória comum no futebol brasileiro, essa peça deve ter se perdido.

A Província do Pará, 10/12/1971

CONCLUSÃO

Portanto, não restam dúvidas! Os títulos regionais do Clube do Remo são legítimos, pois foram organizados a CBD e eram previstos nos regulamentos oficiais das competições. Qualquer tentativa frustrada de pôr em cheque a sua autenticidade nada mais é do que a total falta de conhecimento, por vezes mau-caratismo por parte dos rivais, que há muitos anos sofreram nas garras do Leão Azul. O futebol não nasceu no século 21... É muito mais antigo e rico. E o Clube do Remo é a prova disso. 

Tradição não se compra, se conquista!